Sistema Aberto
Durante o século XIX, a medicina começava a se distanciar das práticas empíricas e improvisadas que marcavam a Era Pré-Moderna. Entre laboratórios improvisados, descobertas científicas e o surgimento de novas tecnologias, uma inovação aparentemente simples mudou para sempre a prática clínica: a combinação agulha + seringa, ou o chamado sistema aberto de coleta sanguínea.
Antes dessa invenção, coletar sangue era um ato carregado de incertezas, riscos e improvisações. As veias eram perfuradas com lâminas, tubos improvisados ou até penas ocas, dependendo da região e da disponibilidade de materiais. A manipulação manual aumentava a probabilidade de hemólise, coagulação e contaminação, tornando cada coleta um desafio técnico.
Foi nesse contexto de tentativa e erro, de observação cuidadosa e refinamento contínuo da técnica, que surgiu o sistema aberto, estabelecendo a base da flebotomia moderna.
As raízes históricas da coleta sanguínea
A coleta sanguínea tem raízes muito antigas. Civilizações como os egípcios, gregos e romanos já praticavam sangrias terapêuticas, acreditando que a remoção de sangue ajudava a equilibrar os “humores” do corpo. Durante séculos, a flebotomia era mais ritual do que ciência, e a segurança do paciente era secundária.
No século XVII, surgiram os primeiros experimentos com “seringas rudimentares”, feitas de vidro ou cana, com pistões manuais, usadas para injetar pequenas quantidades de líquidos em animais ou humanos. Esses dispositivos, embora primitivos, demonstraram a possibilidade de controlar a entrada e saída de fluidos corporais, um conceito central para a coleta sanguínea moderna.
Francis Rynd e a agulha metálica
O primeiro grande avanço real veio em 1844, quando o médico irlandês Francis Rynd desenvolveu uma agulha oca metálica capaz de penetrar a pele sem cortes extensos. Essa inovação permitiu acesso direto aos tecidos subcutâneos e, mais tarde, às veias, reduzindo dor e risco de complicações.
Pouco depois, em 1853, dois inventores transformaram a ideia em prática clínica:
- Alexander Wood (Escócia), que criou a seringa hipodérmica com êmbolo para administrar morfina;
- Charles Gabriel Pravaz (França), que desenvolveu um modelo metálico com pistão calibrado, permitindo controle preciso do volume injetado ou aspirado.
Essas invenções consolidaram a seringa como ferramenta científica essencial, abrindo caminho para a coleta sanguínea de forma controlada. A capacidade de aspirar sangue manualmente, com pressão ajustável, era inédita e definia o princípio do sistema aberto.
O sistema aberto e a arte da coleta
Com o sistema aberto, o sangue é aspirado da veia para a seringa, e depois transferido manualmente para frascos ou tubos. Apesar da simplicidade, essa técnica exigia (e ainda exige) habilidade manual refinada, sensibilidade para encontrar veias frágeis e domínio da pressão correta para não hemolisar a amostra.
O sistema aberto se destacou por permitir:
- Controle total da pressão negativa;
- Ajuste da velocidade de aspiração;
- Flexibilidade em situações clínicas complexas, como pacientes desidratados, pediátricos ou com veias colabadas.
Enquanto o sistema fechado (Vacutainer) automatizou parte da coleta, o sistema aberto permanece essencial em cenários onde o acesso vascular é desafiador, demonstrando sua resiliência histórica e técnica
Desafios e biossegurança
Embora revolucionário para a época, o sistema aberto tinha um ponto fraco: a exposição direta do sangue ao ambiente durante a transferência. Isso aumentava os riscos de:
- Contaminação bacteriana;
- Exposição do profissional a patógenos;
- Perda ou coagulação da amostra.
A necessidade de minimizar esses riscos impulsionou o desenvolvimento do sistema fechado, mas também destacou o valor do domínio técnico do sistema aberto. Afinal, cada coleta bem-sucedida representava conhecimento aplicado, não apenas sorte.
O sistema aberto no contexto hospitalar moderno
Mesmo com avanços tecnológicos, o sistema aberto ainda é relevante hoje em:
- UTIs e pacientes críticos, onde a pressão do tubo pode colapsar veias frágeis;
- Coletas neonatais, onde volumes mínimos exigem precisão manual;
- Situações emergenciais, quando não há tubos a vácuo disponíveis.
A técnica desenvolvida ao longo de décadas moldou a profissão de flebotomista e biomédico, ensinando disciplina, paciência e atenção ao detalhe, habilidades que não podem ser substituídas por máquinas.
Legado histórico e científico
O sistema aberto é mais que uma técnica:
- É o marco da flebotomia como ciência;
- Representa o aprimoramento da biossegurança ao longo do tempo;
- Mostra que a tecnologia sozinha não substitui habilidade humana.
Do século XIX ao século XXI, o sangue ainda é aspirado com agulha e seringa quando o contexto exige. Cada punção bem-sucedida carrega consigo séculos de observação, erro e inovação.
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