Sistemas Sanguíneos Kell, Duffy e Kidd
O estudo dos sistemas sanguíneos ultrapassa a tradicional classificação ABO e Rh. Embora esses sejam os mais conhecidos, outros grupos também possuem papel essencial na compatibilidade transfusional e na ocorrência de reações imunológicas. Entre eles, destacam-se os sistemas Kell, Duffy e Kidd, cujos antígenos podem desencadear respostas imunes clinicamente significativas.
Sistema sanguíneo Kell
O sistema Kell ocupa posição de destaque na imuno-hematologia por sua alta capacidade de induzir resposta imune. É considerado o terceiro sistema mais importante em compatibilidade sanguínea, depois do ABO e do Rh.
Os antígenos do sistema são codificados pelo gene KEL, localizado no cromossomo 7. O principal antígeno, o K (K1), está presente em pequena parte da população, enquanto o k (K2) é amplamente distribuído. A simples presença do antígeno K é suficiente para tornar o sangue K positivo, e sua ausência, K negativo.
A proteína Kell é uma glicoproteína transmembrana dependente de zinco, com atividade enzimática do tipo endopeptidase. Além de expressar determinantes antigênicos, participa de mecanismos relacionados à maturação das hemácias e à integridade de membrana, em associação com a proteína XK. A deficiência nessa interação pode causar a síndrome de McLeod, marcada por anormalidades neurológicas e hematológicas.
Os anticorpos anti-K, geralmente do tipo IgG, são produzidos após transfusões incompatíveis ou durante a gestação, quando ocorre sensibilização materna por antígenos fetais. Clinicamente, esses anticorpos estão associados a reações transfusionais hemolíticas graves e a formas severas de doença hemolítica do recém-nascido (DHRN).
A DHRN causada pelo sistema Kell é particularmente preocupante porque o anticorpo anti-K não apenas destrói hemácias fetais, mas também inibe a eritropoese, levando à anemia fetal intensa, hidropisia e risco de morte intrauterina. Por essa razão, gestantes sensibilizadas e pacientes politransfundidos devem sempre ser avaliados quanto à presença de anticorpos irregulares do sistema Kell.
Sistema sanguíneo Duffy
O sistema Duffy foi identificado na década de 1950 e se tornou conhecido não apenas por sua relevância transfusional, mas também por sua relação com a resistência a infecções parasitárias. Os antígenos principais, Fya e Fyb, são codificados pelo gene FY, localizado no cromossomo 1.
A proteína Duffy é uma glicoproteína transmembrana que atua como receptor para quimiocinas, participando da regulação de processos inflamatórios. Além disso, serve como ponto de entrada para o Plasmodium vivax, um dos agentes causadores da malária.
Indivíduos que não expressam nenhum dos antígenos (fenótipo Fy(a–b–) são naturalmente resistentes à infecção por P. vivax, pois o parasita depende desse receptor para invadir as hemácias. Esse fenótipo é bastante comum em populações africanas, o que explica a baixa incidência de malária vivax nessa região.
No contexto transfusional, os anticorpos anti-Fya e anti-Fyb são do tipo IgG e podem atravessar a placenta, causando doença hemolítica do recém-nascido, embora com menor frequência e gravidade em comparação aos sistemas Rh e Kell. Em transfusões, esses anticorpos podem resultar em reações hemolíticas agudas ou tardias, especialmente em pacientes com múltiplas exposições sanguíneas.
O sistema Duffy exemplifica a intersecção entre imunogenética e patologia infecciosa, sendo um modelo clássico de como variações genéticas humanas influenciam tanto a resposta imunológica quanto a suscetibilidade a doenças.
Sistema sanguíneo Kidd
O sistema Kidd, descoberto em 1951, é composto principalmente pelos antígenos Jka e Jkb, determinados pelo gene SLC14A1, no cromossomo 18. Sua proteína é um transportador de ureia presente na membrana das hemácias, fundamental para o equilíbrio osmótico celular.
Apesar de estruturalmente simples, o sistema Kidd apresenta desafios diagnósticos importantes. Os anticorpos anti-Jka e anti-Jkb, geralmente do tipo IgG, podem desaparecer do soro com o tempo, tornando-se indetectáveis em testes de triagem. Contudo, quando o paciente é novamente exposto ao antígeno correspondente, ocorre uma resposta anamnéstica intensa, com reativação rápida da produção de anticorpos e consequente hemólise intravascular.
Esse comportamento explica por que o sistema Kidd está frequentemente associado a reações transfusionais tardias, que podem surgir dias após o procedimento. Essas reações muitas vezes passam despercebidas clinicamente, sendo identificadas apenas por quedas inesperadas de hemoglobina e aumento de bilirrubinas.
Embora menos envolvido em casos de doença hemolítica do recém-nascido, o Kidd é um dos sistemas mais temidos no ambiente transfusional justamente pela dificuldade de detecção e pelo potencial de causar complicações severas.
Relevância clínica e laboratorial
O conhecimento aprofundado dos sistemas Kell, Duffy e Kidd é essencial para garantir a segurança transfusional e prevenir complicações imunológicas. Pacientes submetidos a transfusões repetidas, como portadores de anemia falciforme, talassemia ou doenças hematológicas crônicas, apresentam risco aumentado de aloimunização, sendo fundamental o acompanhamento imunológico detalhado.
Nos bancos de sangue, a fenotipagem eritrocitária ampliada e a triagem de anticorpos irregulares são etapas indispensáveis para identificar incompatibilidades e orientar a seleção de unidades de sangue seguras. Em gestantes, o acompanhamento sorológico permite detectar precocemente anticorpos com potencial de causar DHRN e definir condutas terapêuticas adequadas.
Além disso, o estudo desses sistemas amplia a compreensão sobre a diversidade genética humana, demonstrando como pequenas variações moleculares impactam processos fisiológicos e imunológicos complexos. Essa perspectiva reforça a importância do olhar crítico e analítico do profissional biomédico diante dos resultados laboratoriais.
Os sistemas Kell, Duffy e Kidd representam componentes essenciais da imunogenética eritrocitária e possuem relevância direta na prática clínica e laboratorial. A compreensão de suas particularidades biológicas e imunológicas permite reconhecer e prevenir eventos transfusionais adversos, interpretar resultados com precisão e aplicar o conhecimento científico de forma segura e eficiente.
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