A Escherichia coli é uma velha conhecida de qualquer estudante da área da saúde. Ela está presente em praticamente todos os livros, provas, laboratórios e discussões sobre infecções. É tão comum que às vezes a gente até esquece o quanto ela é complexa. Ao mesmo tempo em que compõe a microbiota normal do intestino humano e contribui para o equilíbrio fisiológico, também pode ser responsável por algumas das infecções mais dolorosas, incômodas ou perigosas da prática clínica. Essa dualidade é o que torna E. coli uma espécie fascinante: uma bactéria que pode ser aliada ou vilã, dependendo de quais genes carrega, do ambiente em que se encontra e das condições do hospedeiro.

Características básicas da Escherichia coli

Entre as enterobactérias, E. coli é uma das espécies mais facilmente reconhecíveis em laboratório. Trata-se de um bacilo Gram-negativo, anaeróbio facultativo, geralmente móvel por flagelos, com crescimento rápido e adaptável a diversos meios de cultura.

Em MacConkey, costuma formar colônias rosadas e opacas, resultado da sua capacidade de fermentar lactose, uma característica importante para diferenciá-la de outras enterobactérias. Em EMB, apresenta brilho metálico esverdeado, um clássico visual que praticamente todo estudante aprende a identificar. Além disso, é indol positiva, oxidase negativa e catalase positiva, compondo um perfil bioquímico bem definido.

Essas características simples ajudam no primeiro reconhecimento, mas o que realmente importa é que E. coli é extremamente versátil. Muta, adquire plasmídeos, troca material genético com facilidade e, por isso, apresenta uma diversidade enorme de cepas com comportamentos completamente diferentes.

A relação entre Escherichia coli e o corpo humano

A convivência entre E. coli e os seres humanos é antiga e essencial. No intestino, as cepas comensais desempenham funções importantes, como:

  • competir com microrganismos patogênicos;
  • participar do metabolismo de nutrientes;
  • produzir vitamina K;
  • contribuir para o equilíbrio imunológico local.

Essas cepas vivem em harmonia com o hospedeiro e, na maior parte do tempo, não causam qualquer tipo de doença. Porém, basta a entrada de genes específicos, toxinas, adesinas, sistemas de secreção, cápsulas, para que uma cepa antes inofensiva se transforme em um agente patogênico capaz de provocar doença intestinal, urinária ou sistêmica.

Por que algumas cepas se tornam patogênicas

A chave para entender as infecções por Escherichia coli está na variabilidade genética. Diferentes combinações de fatores de virulência originam grupos chamados de patotipos, cada um associado a mecanismos específicos de ação e quadros clínicos distintos. Alguns desses mecanismos incluem:

  • destruição da borda em escova do epitélio intestinal;
  • produção de toxinas que alteram secreção e absorção;
  • invasão direta das células intestinais;
  • formação de biofilmes;
  • adesão intensa ao epitélio urinário;
  • capacidade de escapar do sistema imune.

Por causa dessa diversidade, a espécie E. coli consegue causar desde uma diarreia leve e autolimitada até infecções urinárias recorrentes, septicemia, meningite neonatal ou diarreias hemorrágicas graves.

Principais patotipos de E. coli intestinal

As infecções intestinais por E. coli são agrupadas de acordo com o mecanismo de patogênese. Cada patotipo tem um “estilo próprio” de causar doença.

EPEC – Enteropatogênica

Responsável por diarréia infantil. Ela se prende firmemente ao epitélio do intestino delgado e provoca destruição das microvilosidades (lesões “attaching and effacing”). Isso prejudica a absorção e leva a diarréia aquosa.

ETEC – Enterotoxigênica

Causa a famosa diarreia do viajante. Produz toxinas termoestáveis e termolábeis que aumentam a secreção de água e eletrólitos. O quadro geralmente é autolimitado, mas bastante incômodo.

EHEC/STEC – Entero-hemorrágica

Uma das mais temidas. Produz toxinas do tipo Shiga, capazes de causar colite hemorrágica e, em alguns casos, síndrome hemolítico-urêmica (SHU). Carne moída mal cozida e leite cru são fontes comuns.

EIEC – Enteroinvasora

Invade o cólon de modo semelhante à Shigella. Provoca febre, dor abdominal intensa e diarreia com muco e sangue.

EAEC – Enteroagregativa

Causa diarreia persistente. Forma agregados bacterianos em “tijolinhos” e produz biofilme, o que favorece colonização prolongada.

DAEC – Difusamente Aderente

Associa-se a quadros diarreicos em crianças. Tem um padrão de adesão mais disperso no epitélio.

E. coli também é líder nas infecções urinárias

Fora do intestino, E. coli continua sendo um dos principais agentes de infecção em humanos. As cepas uropatogênicas (UPEC) foram moldadas para colonizar o trato urinário. Possuem adesinas específicas que permitem fixação ao urotélio e resistência ao fluxo urinário.

Elas são responsáveis pela maioria dos casos de:

  • cistite (dor e ardência ao urinar);
  • pielonefrite (dor lombar, febre, mal-estar);
  • infecção urinária recorrente;
  • bacteremia secundária a ITU.

A proximidade anatômica entre ânus e uretra explica por que essa bactéria ascende facilmente, principalmente em mulheres. Fatores como baixa ingestão de água, vida sexual ativa, uso de cateteres e má higiene íntima aumentam o risco.

Meningite neonatal e outros quadros graves

Algumas cepas possuem cápsulas especiais (como o antígeno K1), que aumentam a capacidade de atravessar barreiras fisiológicas e evadir o sistema imune. Em recém-nascidos, isso pode resultar em meningite, um quadro grave que requer atenção imediata.

Além disso, Escherichia coli pode causar:

  • septicemia, especialmente em pacientes imunocomprometidos;
  • infecções abdominais;
  • pneumonias associadas à ventilação;
  • infecções de feridas.

Como acontece a transmissão

A forma de transmissão depende do tipo de infecção:

Vias intestinais
Ocorrem principalmente via fecal-oral:

  • água não tratada;
  • alimentos crus ou mal lavados;
  • carne moída mal cozida;
  • leite não pasteurizado;
  • contaminação cruzada em cozinhas;
  • contato direto com indivíduos infectados.

Vias urinárias
Dependem de migração da flora intestinal para a uretra, favorecida por:

  • anatomia feminina;
  • relações sexuais;
  • higiene inadequada;
  • cateterismo;
  • alterações hormonais.

Diagnóstico no laboratório

O estudo laboratorial de Escherichia coli é um dos mais clássicos da microbiologia.

Cultura:

Cresce com facilidade e apresenta morfologia característica em meios seletivos.
A fermentação de lactose é um marcador importante.

Testes bioquímicos

Confirmam o isolamento e ajudam a diferenciar de outras enterobactérias.

Testes moleculares

Em casos de diarreias, PCR para genes de toxinas e adesinas identifica o patotipo.

Urocultura

A interpretação é baseada na contagem de colônias e nos sintomas do paciente.

Tratamento e considerações importantes

O tratamento varia de acordo com o sítio da infecção.

  • Diarreias: o principal é hidratação. Antibióticos só em casos específicos; são contraindicados na suspeita de EHEC por risco de SHU.
  • Infecção urinária: geralmente requer antibiótico, preferencialmente guiado por antibiograma.
  • Quadros graves: como pielonefrite, septicemia ou meningite, exigem terapia intensiva e hospitalar.

O cenário atual de resistência bacteriana faz com que a escolha do antibiótico seja algo que deve sempre considerar os dados locais e o resultado do antibiograma.


Prevenção

  • lavar as mãos regularmente;
  • higienizar bem alimentos crus;
  • evitar carne mal cozida;
  • não consumir leite cru;
  • manter águas adequadas para consumo;
  • cuidar da higiene íntima;
  • ingerir água suficiente diariamente.

Em ambientes hospitalares, medidas de controle de infecção são fundamentais para evitar cepas multirresistentes.

A Escherichia coli é um organismo modelo em estudos científicos, uma presença constante em quadros clínicos e um excelente exemplo de como microrganismos aparentemente simples podem ter repercussões complexas. Entender suas características, comportamentos e mecanismos de patogenicidade ajuda a interpretar exames, reconhecer padrões de infecção e tomar decisões mais acertadas na prática profissional.

Mais do que uma bactéria comum, ela é um símbolo da microbiologia moderna: adaptável, diversa, desafiadora e essencial para compreender a relação entre microrganismos e o corpo humano.

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