Parâmetros laboratoriais para avaliar a função renal
A função renal exerce papel central na manutenção da homeostase do organismo, sendo responsável por processos como a excreção de metabólitos nitrogenados, o controle hidroeletrolítico, o equilíbrio ácido-base e a produção de hormônios como eritropoetina e renina. Dentre os exames laboratoriais mais utilizados para avaliação da função renal destacam-se a dosagem sérica de creatinina e ureia, além da estimativa da taxa de filtração glomerular (TFG).
A interpretação integrada desses parâmetros permite não apenas a identificação precoce de distúrbios renais, mas também o acompanhamento da progressão de doenças como a doença renal crônica (DRC), além do ajuste posológico de fármacos excretados pelos rins.
Creatinina: marcador de filtração glomerular
A creatinina é um produto do metabolismo da creatina fosfato, substância envolvida na produção de energia no tecido muscular. Sua taxa de produção é relativamente constante em indivíduos saudáveis, sendo diretamente proporcional à massa muscular.
A creatinina é eliminada quase exclusivamente pelos rins, por meio da filtração glomerular, com mínima secreção tubular. Em razão dessas características, seus níveis séricos refletem de forma indireta a taxa de filtração glomerular.
Contudo, trata-se de um marcador com algumas limitações:
- A concentração sérica de creatinina pode permanecer dentro dos valores de referência mesmo com uma redução significativa da TFG, sobretudo em idosos ou pacientes com baixa massa muscular.
- Fatores como dieta, uso de suplementos, desidratação ou medicamentos (como cimetidina e trimetoprima) podem interferir nos níveis séricos.
- Pequenas variações laboratoriais ou pré-analíticas podem impactar o resultado.
Apesar dessas limitações, a dosagem de creatinina continua sendo amplamente utilizada como parâmetro inicial de triagem da função renal, especialmente quando combinada com o cálculo da TFG.
Ureia: marcador complementar de função renal com baixa especificidade
A ureia é o principal produto nitrogenado do metabolismo das proteínas, sendo sintetizada no fígado a partir da amônia gerada na degradação de aminoácidos. Após sua produção, é transportada pelo sangue e excretada pelos rins por meio de filtração glomerular e reabsorção tubular passiva.
Diferentemente da creatinina, os níveis de ureia são significativamente influenciados por fatores extrarrenais, como:
- Ingestão proteica elevada
- Estados hipercatabólicos (infecções, trauma, queimaduras)
- Hemorragias digestivas altas
- Desidratação
- Uso de corticosteroides
Por esse motivo, a ureia é considerada um marcador de baixa especificidade renal, embora continue sendo útil quando interpretada em conjunto com a creatinina, especialmente na diferenciação entre causas pré-renais e renais de insuficiência.
A relação ureia/creatinina (habitualmente expressa em mg/dL) pode fornecer pistas clínicas importantes. Uma relação superior a 20:1 pode indicar hipoperfusão renal, enquanto uma proporção próxima a 10:1 sugere injúria renal intrínseca.
TFG: o parâmetro mais confiável da função renal
A taxa de filtração glomerular representa o volume de plasma filtrado pelos glomérulos renais por unidade de tempo. Em adultos jovens saudáveis, a TFG é de aproximadamente 120 mL/min/1,73 m². Reduções progressivas da TFG refletem comprometimento funcional dos néfrons e são utilizadas para estadiamento da DRC, conforme as diretrizes da KDIGO (Kidney Disease: Improving Global Outcomes).
Como a medição direta da TFG (por meio de substâncias exógenas como inulina ou iohexol) é impraticável na rotina clínica, sua estimativa (eTFG) é realizada a partir de fórmulas que utilizam a creatinina sérica e variáveis como idade, sexo, peso corporal e etnia.
Entre as principais fórmulas de estimativa, destacam-se:
- Cockcroft-Gault: considera peso corporal, sendo útil para ajustes de dose farmacológica.
- MDRD (Modification of Diet in Renal Disease): amplamente usada, porém menos precisa em indivíduos com função renal normal.
- CKD-EPI (Chronic Kidney Disease Epidemiology Collaboration): considerada mais acurada, especialmente em faixas de TFG acima de 60 mL/min/1,73 m².
Nos últimos anos, o uso da CKD-EPI sem ajuste para raça tem sido recomendado por diversas entidades científicas, em virtude de questões éticas e de equidade no atendimento.
A TFG estimada apresenta melhor correlação com a função renal verdadeira do que os níveis isolados de creatinina, especialmente em populações vulneráveis (idosos, mulheres, pacientes com sarcopenia). Em alguns casos, a associação com a dosagem de cistatina C pode aumentar ainda mais a acurácia da estimativa.
A interpretação integrada de creatinina, ureia e TFG é essencial para a avaliação precisa da função renal, tanto em ambientes ambulatoriais quanto hospitalares. Embora amplamente utilizados, esses marcadores devem ser analisados à luz do contexto clínico do paciente, considerando fatores como idade, composição corporal, uso de medicamentos e presença de comorbidades.
A importância de exames complementares
Além disso, a avaliação complementar com exames de urina (principalmente proteinúria e relação albumina/creatinina), eletrólitos séricos e exames de imagem pode ser necessária para uma abordagem diagnóstica mais abrangente.
Com o envelhecimento populacional e a alta prevalência de doenças crônicas como diabetes mellitus e hipertensão arterial sistêmica, a identificação precoce da disfunção renal torna-se uma prioridade em saúde pública. Nesse cenário, a atuação integrada entre o laboratório clínico e os profissionais de saúde assistenciais desempenha papel decisivo na prevenção da progressão da doença renal e na otimização do cuidado ao paciente.
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